domingo, 26 de dezembro de 2010

a Lapa do homem de Marília.

Eu era um homem recém feito quando Marília me tomou pela mão e foi me mostrar a Lapa. Menino meio abobado que era, me via nos braços de uma mulher pela primeira vez, e eu ainda me via meio zonzo sem entender coisa com gesto.
Entendi a vida quando Marília meio de brincadeira me colocou dependurado no bonde de Santa Teresa.E eu daquele jeito de menino tonto, que vinha do interior.
Entendi a vida quando o bonde passou por de cima da Lapa.
Vi as casas e dentro delas : as pretas, os peitos, as crianças, as cores. Entendi gente.
Dava pra sentir o cheiro do perfume da mulher na janela da criança que deixava por escorrer um catarro do nariz ali embaixo da marquise pra quem quer deitar.
Ouvi cada chiado de rádio dentro da janela do homem que fumava lentamente enquanto suavam as bicas dos seus poros muito dilatados.Mas pude ouvir o arranhar dos saltos de quem andava na calçada lá embaixo e o tilintar de qualquer coisa feito chave ou feito moeda no bolso do rapaz trabalhador. Senti cheiro de sexo e cheiro de pudor.
Foi ali que vi a vida pela primeira vez , crua.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010




Por vezes fico possuída de uma tristeza.
Uma tristeza que seria quase bonita, se tristeza não fosse.
Entender o mundo me dói.
Me sinto abatida por essa tristeza quando, não sei de que modo,
essa tristeza de mundo me toma.
Entendo a existência até as vísceras e isso me complica. Percebo a gente que vive e a gente que existe, percebo e sinto e quase choro.
Quando sinto a vida, e quando entendo a vida, sinto uma dor todinha por dentro.
Viver dói.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

profissão poetIsa

O que eu gosto é de ordenar as palavras (que moram soltas entre as nuvens)
em versos que fazem sorriso e pensamento.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Eu ainda não sei.
Talvez eu devesse estar mais disposta, mais ativa, com mais vontade, com mais vontade boa e do coração.
Acho que eu deveria estar buscando qualquer coisa que se busca.Qualquer coisa que vejo todo o mundo buscar.Qualquer coisa que se fala que se deve buscar.
Eu deveria estar mais encantada e querendo mais. Eu deveria parar de falar e mais, eu deveria parar de escrever tanto que deveria.
Deveria atuar de uma vez.Atuar no sentido mais amplo de qualquer ação que não seja a de pensar e desenhar esses pensamentos em palavras.
Mas eu poderia dizer que estou cansada, que estou...
Mas não há nada.
Eu apenas estou esperando. Não sei o que espero e talvez eu espere apenas saber o que espero de tudo isso.Estou parada e pregada, sempre imersa em mil pensamentos que nem sempre fazem sentido, e que na maioria das vezes não faz.Estou aqui e escrevo coisas que não vão mudar nada, que não vão atuar no mundo inteiro e nem no meu e nem no de ninguém. Estou aqui inutilmente e escrevo sem saber a razão.Eu ainda não sei.Espero que não haja mal em não se saber ser.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Eu era um homem casado, sério e funcionário público quando conheci Dora.
Sempre que entro em uma crise profunda, vejo que dou pra entrar em lugares sem sentido, o que me constrange muito quando me vejo em alguma loja que não sei como entrei e, enfim, um vendedor vem me atender,e eu sempre tenho que inventar coisa.
Foi em uma dessas crises que conheci Dora.
Dora mora, não sei desde quando, perto da minha casa aqui no Rio de Janeiro, e eu estava voltando do trabalho quando a vi.
Desde que vi aquela mulher de olhos meio marejados de quem está sempre esperando, cabelos meio desalinhados e um rosto que não tem porquê,comecei a desviar a minha crise para aquele pingente de coração que ela carregava.
No trabalho, pegava-me com os olhos em uma loja longe em Copacabana, onde via Dora.Ninguém questionava minha distração momentânea que já era habitual.
Em casa, a mulher deu pra falar que não agüenta mais essa minha mania de dar crise de identidade e sair do mundo.Ameaçou separação, levar os filhos, voltar pra casa da mãe, e eu até ouvia mas,sinceramente, não conseguia reagir.Um dia cheguei em casa e não tinha mais ninguém.Talvez fosse a hora de trazer Dora pra junto de mim, pra ver se calava essa agonia de quem chega do trabalho de funcionário público.
Quando cheguei ao antiquário que havia conhecido Dora,ela não estava mais pendurada na parede.Ainda perguntei ao vendedor onde estava aquele quadro de pintura artística de uma mulher de olhos meio marejados de quem está sempre esperando, cabelos meio desalinhados e um rosto que não tem porquê, aquele quadro que fica perto do móvel provençal...
Vendido.
Eu deveria ter levado antes,mostrado à mulher, às crianças...
Mas como um homem casado, sério e funcionário público poderia levar Dora, uma pintura artística pela qual tinha se apaixonado pra casa?
Desde então vivo só.

domingo, 21 de novembro de 2010

Impressões

Eu vi uma mulher trocadora de ônibus com cara de que sorria pra sempre,
ainda mais quando dizia “Guanabara” de si para ela mesma.

Eu vi um homem no elevador que tinha cara de máquina,
ele parecia ter memória de tudo no mundo.

Eu vi uma mulher no vagão. Tão bonita, tão bonita e tão preta, que me deu vontade de ser preta também, que é pra poder me lamber e ver se tenho gosto, nas noites de solidão.

sábado, 20 de novembro de 2010

Um filme

E num futuro,eu poderei dizer que nos amávamos.E nos amávamos muito, com sede de orgasmos e saliva.

domingo, 7 de novembro de 2010

Já faz um ano.Não, faz mais de um.
Há um ano achei que minha vida começaria.De fato, começou, mas não como eu imaginava. Sustentada por alguma razão mais sólida que me levava a sair de casa pela segunda vez, achei que finalmente usaria dessa razão para buscar a outra:aquela pela qual sempre vivi e a única paixão que já senti no fazer da vida.Quando cheguei ao Rio de Janeiro, percebi.Não percebi, mas achei, me achei
velha demais, desabida demais para.O sonho acabou.Hoje não tenho mais paixão de fazer na vida,mas ainda procuro por.
Vivo de uma frustração de quem não sabe com o que se frustrar na vida,que tomou outro rumo, em uma vida sem rumo.Busco por um.

sábado, 6 de novembro de 2010

Meus planos

Virarei de leve meu rosto, de modo que eu fique ligeiramente de perfil para seus olhos, meu lado direito. Darei então um sorriso que mostre apenas a parte superior dos dentes e então olharei pra baixo, como que sem graça, e depois pra você, com um sorriso um pouco maior, torcendo assim o pescoço, como quem fica sem jeito. Tocará Dream a little Dream of me, e eu estarei com um vestido branco que faz roda depois da cintura e um coque na cabeça.
Desde já peço perdão por cada gesto meu meticulosamente calculado para atingir em cheio qualquer parte do seu cérebro nas imediações do amor.Trate isso como uma pequena travessura de uma menina que de tanto sonhar, gosta de nuvens.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

E no meio de tanta coisa que acontece, meu maior medo tem sido o de perder a inspiração.
Poderia,por isso,sentir latejando um egoísmo que,por assim chamar,seria todo meu.Mas não sinto.

domingo, 24 de outubro de 2010

Volto como quem busca sua essência. Volto para procurar uma menina.
Não sei bem o que quero, em todos os sentidos que compreende o querer.E talvez o que eu queira seja voltar ao útero.Encontrar-me nadando na posição fetal seria a melhor forma de me encontrar.Há qualquer confusão sobre paz e alegria em mim, como se, havendo paz, a alegria não se suportasse vívida.

No mais, essa semana quero comprar margaridas brancas para enfeitar meu apartamento.

Here comes the sun!

sábado, 2 de outubro de 2010

Às 03:00h

Alzhaimer é uma doença sem coração,
afeta o cérebro.
Que saudade dos meus avós,
que estão vivos e moram ao lado.

domingo, 26 de setembro de 2010

Às vezes dá doença do coração.
Doença de peito apertado, ou doença de amor não é tanta besteira como se diz.
Eu também já achei, em outro tempo, que era doença que dava em cabeça vazia, em gente abobada e de coração fraco.Mas hoje não.Doença de peito apertado vem que deixa a gente sem prumo.O estômago ouve o coração e fica sem fome.A gente fica meio tonta como se tivesse levado um sacode.O corpo fica meio molenga e com vontade de nada.O olho vai pra longe e a gente sente o coração bem fraquinho.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

E depois daquela briga, eu o vi na minha cozinha.
Vi duas crianças e vi que chegavam amigos, apesar de ser um dia comum,
em nossa casa que era arejada e entrava sol.
E depois daquela briga, eu vi que eu nos imaginava em um pra sempre.
Não sei se nosso pra sempre será de 8 meses, 2 anos, 7 anos ou 54,
mas foi bom vê-lo ali, progetado no pra sempre que criei pra mim.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Acredito na declaração como a materialização do sentimento.
Quem se declara, é porque chega a um ponto em que o sentimento começa a incomodar, pois chega a não caber mais tanto amor nem no cantinho no dedinho mindinho do pé.Quando o amor começa a afogar, é então que há de se declarar:
-amo você.

quem não se declara, não tem tanto amor assim pra se afogar.

sábado, 18 de setembro de 2010

memória

Há qualquer coisa que acontece a quem se perde.Sinto que caminho para um esconderijo em mim, sinto que perco qualquer coisa do corpo, qualquer coisa que se nota falta e que não é um fio de cabelo.Poderia ser um dedo, mas também acho que seja pouco.Caminho para uma mutilação e luto.Luto vítima de uma alegria difícil.Há qualquer coisa que acontece a quem se perde e eu perco.Não sei quando se deu,mas me encontro na esteira da mutilação que se aproxima.Eu me vejo indo aos poucos e isso tem doído fundo.É que se eu simplesmente não enfrentasse a fila para ser mutilada, e se perdesse assim, um braço,por acidente,em um de repente,acho mesmo que seria mais fácil de lidar.Mas vejo meu caminho.Escondo-me em mim como um bicho,como um mimetismo covarde.Mas luto.Tenho lutado, mas minha luta parece ser filha de uma alegria falsa.Estou emprenhada, estou grávida de uma tristeza e não quero que minha alegria vire lembrança.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010




E quando o mundo parece insistir em se mostrar nublado para mim,
umas lágrimas escorrem em silêncio
e moon river vem como me dá um beijo:
sou romântica.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

sábado amarelo

-Que dia é hoje?
-...
-Não! Não olha no celular, não. Hoje é de 68.hoje é... dia 20 de fevereiro! 20 de fevereiro de 1968, bota aí.

(...)

E dia 20 de fevereiro de 1968, em pleno 2010,
ela me disse que estava dando pra perceber, no ultimamente, que todas as pessoas que ela gostava, elas as via vermelhas.Que ela me via vermelha.Mas eu sou verde, vejo-me verde:

-Essa coisa de cor...É que todas as pessoas que eu gosto,tenho percebido:
eu as vejo vermelha.

-mas eu sou verde.

-ele, o moço,...ele também se disse verde...

-Então você é daltônica, meu bem.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Agosto

E desde então, todos os outros meses foram Agosto.
Quando ele a deixou e ela não sabia de todo sentimento que guardava em si,
quando ele a deixou, ela esperou por Agosto, quando ainda era Junho.
Ela passou a crer como quem passa a crer em Deus, que em Agosto, ele voltaria para ela.
Como quem entende, ela entendeu por assim querer entender, que ele a havia deixado por ela não morar ali ainda em Junho.Mas em Agosto, ela moraria, ele voltaria.
Agosto de quem chega, Agosto chegou.
Ela chegou, ele estava, eles não estavam.E já era Agosto.
E como quem crê em Deus, ela acreditava em Agosto, portanto, para ela,
desde então, todos os outros meses foram Agosto: o primeiro mês que ele voltará para ela, embora já estejamos em fevereiro.

domingo, 29 de agosto de 2010

Vivo de sentir saudade.
saudade da infância:
Vila Déa, colégio, pular elástico.
saudade de ontem:
risadas, bar.
Sinto saudade da Rural(muita),
de quem já se foi(saudade do bolinho de chuva da Vó Edith, das canções da Beta),
saudade de uma roda de violão na época de colégio,
saudade de uma paisagem de janela decorada,

saudade de um sonho
ou saudade de ter um sonho.

Vivo de sentir saudade, saudade de quando faz tempo
e saudade de quando escrevi esse primeiro verso.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Destino,Barra Mansa.

Rio, 24 de Agosto de 2010

Querido O,

Confesso que estou muito feliz por você estar feliz.Por você estar sendo correspondido por alguém de alma bonita, mas, principalmente, por você estar vendo o mundo colorido, que é o mais importante:
Isso é uma coisa de felicidade que é sua, só sua e só você consegue entender...
acho que chama amor.

Beijos de uma saudade louca,

Isa.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Displicência

Quando a vi se chamar por Teresa, parecia haver uma visão de coisa fora do mundo.
Quando a vi assim, de outono, como quem chega de cambaleio (coisa de quem se perde),
vi que precisava escrever.

É preciso escrever alguma coisa sobre pele.
Sobre qualquer coisa como uma displicência no jeito que gera uma beleza.
Eu não sei sobre esses dias que se dá na mulher
Essa coisa da fêmea de ficar meio tom pastel.
É preciso escrever alguma coisa sobre um jeito de andar meio lunático
Meio absorto em qualquer coisa que transcende, meio nuvem.
É preciso que se tenha uma beleza meio fora, meio ausente, meio
De quem se evapora
Estou vendo muita beleza nessa coisa toda de quem é.
Há de se escrever alguma coisa sobre displicência.

Teresa bonita, antes ligada, intensa, cheia de coisa com cor, alguma coisa a ver com sol e malemolência. De repente, Teresa meio pálida, meio displicente. Uma Teresa bonita, meio avulsa, meio volúvel, meio efêmera. Como se tivesse de pegar Teresa pela mão, se não pega, ela voa. Teresa pode me escapar toda, meio névoa.

Há de se ter essa beleza. Uma beleza de Teresa, uma beleza meio reticências, meio olhos no céu, meio displicente. Uma beleza meio erguida na melancolia. Qualquer coisa de triste.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Domingo

E então eu, uma menina de uma família de cinco, que tem três sendo homens viciados em futebol, reservei-me a missão de odiá-lo, visto que ele estava o tempo todo na família na casa na rua na chuva ou na fazenda.O futebol sempre foi o meu “barulho de domingo”.Eu associei, por muito tempo e talvez ainda, o domingo ao futebol, ou melhor, ao barulho, ao ruído, ao chiado insuportável de.
Apesar de tudo isso, sempre cultivei a vontade de ir ao maracanã. Eu falava que queria ver a energia, a muvuca, o tumulto, os gritos, as paixões tão solidificadas como parecia ser.
Foi então que como uma experiência antropológica, eu fui.
Além de achar bonito e emocionante, desde a entrada, até quando vai subindo pra arquibancada e se vê de fora aquela pontinha de um mundo de gramado, além de, há algo que preciso muito falar.
Estava eu no jogo, tentando entender o jogo pelas cores das camisas e tentando descobrir sozinha onde o time tinha que fazer gol, quando aconteceu.
O gol.
Eu não estava ali por um time, assim, de verdade...
Eu sempre falo que sou botafoguense para tentar suprir o trauma do meu pai em ter um filho flamenguista e outro tricolor. Mas a verdade é que eu nunca assumi um time, nunca amei um time, etc.
Eu estava na torcida (linda- desculpa, pai)do fluminense e, dessa forma, mesmo que eu não torcesse, eu tinha que fingir que.
Mas eu não fingi, eu torci (desculpa, pai).
Enfim, sem mais digressões: Eu tava ali no maraca, na torcida do Fluzão, vendo o jogo e saiu um gol.
Quando eu vi, eu tava gritando e comemorando. Acontece que eu senti.
Eu senti uma coisa muito delícia, não sei o que. Eu só sei que foi assim que eu entendi a paixão que as pessoas tem pelo futebol, pelo seu time, etc.É que a partir daquilo, eu passei o resto do jogo todo sofrendo e lutando muito pra sentir aquilo de novo.Eu só queria um gol, só isso.
Eu não sei por que eu queria um gol, não sei qual o fundamento filosófico ou social de um gol. Sei que um gol não vai diminuir a fome na África, nem vai ajudar na análise sobre os meninos de rua, nem vai fundar uma teoria sobre sobre sobre nada. Eu sei que eu não via função social no gol,nem nenhuma função de coisa nenhuma, mas eu o queria. Eu o desejava de uma forma mais intensa, como se tudo que eu quisesse naquele momento fosse só isso: um gol.
Era um desejo cru,e eu acabava achando isso muito bonito em mim.
A conclusão é que eu não sei se foi só uma experiência antropológica válida, se eu tô me rendendo ao futebol (droga, não quero!), ou se eu sei lá.
Eu só sei que ontem eu fui ao maracanã de novo, pra sentir de novo o que eu senti. E o flu fez três, e eu fiquei feliz.

sábado, 14 de agosto de 2010

Ana K.

Era uma vez uma menina que chamava Ana Karolina com K e por ser assim vivia de não gostar desse K desse nome que ganhou e que podia ser bonito com C: Carolina.
Apesar de ter esse mal de mágoa com o mundo, Ana Karolina não deixava de preencher meu coração com pequeninas alegrias em doses diárias.E como homeopatia, Ana K, foi me levando a um tratamento até que eu gostei dela por completo.
Hoje Ana K faz parte do meu pedaço no mundo.Hoje a batizei de Ana K.
Quem sabe ela gosta?

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Mas hoje me permito sofrer por amor, mesmo sabendo que há fome na África.

Quando meus pés cruzaram a portaria foram os mesmos que desceram o elevador e abotoei o último botão esquecido da blusa na hora que cruzei a porta, batendo-a devagar pra não acordar ninguém do apartamento que eu saí me despedindo com os olhos da telelista que fica em cima do guarda roupa e do livro TRO PI CÁ LIA que está em cima dos seus vinis.Porque foi antes do meus pés cruzarem a portaria que eu comecei a sentir a dor.
Foi quando ele começou a falar e não consegui mais me mexer.
Falência múltipla dos órgãos esclerose múltipla acelerada instantânea paralisia facial corporal.
Eu sabia que a dor era mental. Eu sabia que era psicológica.Cabeça. Cerebral.
Mas continuei ali,sentindo a dor. Eu queria sentir a dor como quem se pune. Opus dei de mim.Eu queria sentir toda a dor. Penitência física. Mortificação corporal.
De repente, o que era mental ficou tangível demais e eu já o sentia no meu corpo.
Ainda estava paralisada.
Eu não sabia onde doía. A dor produzida pela cabeça tinha sofrido metástase e eu não conseguia saber onde doía.Não tinha modo de estancar o sangue.Não tinha sangue. Era dor interna.E continuava paralisada.
Foi quando ele começou a falar que começou a dor e que não consegui mais me mexer.
Depois os olhos começaram a passear e eu comecei a decorar o apartamento, paralisada, para poder guardá-lo pra mim.
Eu decorei aquelas falhas na parede que tem ao lado da cama e também como o fio da luz vem do teto e chega ao interruptor por uma espécie de caixinha branca que deve ter por função social esconder fios.Eu decorei o apartamento e vi que no dia que comecei a sentir a dor, antes dos meus pés cruzarem a portaria, havia dois copos esquecidos sujos na mesa do computador.
Como quem se despede do apartamento.Como quem chora.
Eu não sei que dor é essa.Eu sei.

Eu sempre bati pé que problema na vida era morte ou doença.
Mas hoje me permito sofrer por amor, mesmo sabendo que há fome na África.
E dói.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Pão e renda

Quinco vivia de fazer pão.
Quinco acordava ainda de noite pra fazer pão.
Quinco não sabia que na vida poderia fazer outra coisa que não fazer pão que Quinco aprendeu de ofício com o avô que ensinou o pai e foi ensinado pelo bisavô e que foi ensinado pelo tataravô de Quinco.
Mas na vida, Quinco gostava de fazer pão.
Um dia, Quinco conheceu Julieta.
Julieta moça rendeira que de tanto fazer renda tinha os olhos bem miúdos pra modo de enxergar cada caminho que a agulha vinha de fazer dançar a linha no pano.
Julieta fazia renda a tarde inteira.
Julieta não sabia que poderia fazer outra coisa que não fazer renda que Julieta aprendeu com a avó que ensinou a mãe que não fez renda e por não fazer renda se perdeu no mundo como mulher que se perde mas que tinha sido ensinada pela bisavó que foi ensinada pela tataravó de Julieta.
Julieta, na vida, gostava de fazer renda.
Um dia, a avó de Julieta pediu a ela que parasse a renda, embora ainda fosse de tarde, pra modo de comprar pão pro café.
Julieta de olhos bem miúdos de tanto fazer renda, que gostava na vida, foi à padaria que trabalha Quinco, embora não fosse tão manhã que fosse noite.Era de tarde.
E Quinco conheceu Julieta
E Julieta conheceu Quinco.
E depois desse dia,
Quinco que vivia de fazer pão, passou a fazer pão pensando em Julieta.
Com a massa de pão ainda tão cedo que parecia até noite, Quinco imaginava Julieta.
Quinco amassava a massa com um amor conjugal que nutria pela moça. Um carinho no fazer pão no dobrar a massa no jogar farinha e alisar e no cortar delicadamente na tentativa de não ferir.Quinco sentia Julieta na massa.
E depois desse dia,
Julieta que vivia de fazer renda, passou a fazer rendas pensando em Quinco.
O jeito delicado de trançar a linha pelo pano. Via um beijo no encontro da ponta da agulha no tecido.Julieta passava a ver a cara de Quinco nos entremeios de renda, nas flores dos bordados. Julieta passava a rendar seu amor na tentativa de exteriorizar o sentimento que nutria. Julieta sentia Quinco nas rendas.

Julieta e Quinco nunca se falaram.
Mas depois daquele dia, a cidade passou a ter melhores pães e mais bonitas rendas.
De repente parece que tudo faz sentido.
Parece que tudo está no lugar que foi meticulosamente planejado para estar em algum lugar de um tempo que passou.
Parece que o universo agora se encaixa e começa a fazer sentido.
E assim sobre o sentido, digo que sinto os meus passos mais compassados e doces
em uma leveza que parece conduzir a um luxo radioso de sensações.
Sensações doces.
De repente parece que tudo ficou mais brando
suavemente a vida passa a se fazer sentir mais calma.
Se eu me permitisse descrever, tentando materializar, ainda que em palavras, essa sensação,eu diria estar envolvida por uma nuvem.
Uma nuvem com entremeios de uma transparência fina e delicada.
Uma sensação meio flor, meio gente. Meio nuvem,meio passarinho.
Meio grama, meio cheiro de grama. Meio corrida descalça na grama.
Acho que de tanto tentar descrever,encontrei a palavra para o que de repente sinto:

Harmonia.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

a sinceridade

Há dias em que a existência se torna insuportável,assim como a possibilidade de inexistência de mim, que se torna angustiante.
Há pessoas que.Há dias em que há pessoas que não suportam o ser.
Não sei se é coisa minha.Seria eu a única no mundo que, por vezes, não suporta o peso de ser? Há um quando em que não suporto o peso de me ser, ou de não me ser,visto que não peso. Convivo com essa falta de existência que, por existir, já me mata.
Nesses dias, enjôo de meus pensamentos,tenho náuseas secas com meu jeito, irrito-me com meus modos naturais.

E há dias em que eu, que costumo ver o mundo em flores, ou flores no mundo, canso-me de tudo isso.E mais, crio uma antipatia, talvez uma ojeriza pelo meu próprio mim.

A verdade é que há dias em que me acho insuportavelmente chata.

sábado, 10 de julho de 2010

Valsinha

Um dia, ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar
E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça, foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz

(Chico Buarque)

segunda-feira, 28 de junho de 2010

eles



Nunca consegui falar de vocês sem que o texto se tomasse de sentimentalismo, pieguice e nunca consegui falar bem de vocês, no sentido de me expressar bem pra conseguir letrar essa coisa que sinto.
E agora sinto que vocês já vão embora e já sinto saudades. Agora sinto que vocês parecem, quase sempre, não estarem mais aqui.
Sinto um olhar vago, uma pele marcada,uma voz carregada e passos mais compassados.
De repente,parece que enquanto com vocês, meu mundo passa a girar mais devagar,no ritmo que a vida de vocês agora leva.Sinto saudade de vocês.Do vocês de ontem.Sinto saudade mesmo,e por sentir tanto sentimento assim,de medo,de um futuro sem vocês e de já sentir vocês ausentes de alma, e presentes só de corpo, é que sinto e sinto tanto e sinto muito.Eu achei que já havia me acostumado com a nova e pouca fala, com olhar parado,com as poucas perguntas, e com a vaguidade que tomou conta de vocês. E eu achei que havia me habituado e me contentado em dar um beijo, sorrir, falar uma palavra de carinho e ir embora. Mas não. Eu ainda não me contento e eu ainda não me habituei e eu ainda não aceito e eu ainda não suporto a idéia desses novos vocês, desses novos meus.
Eu sinto que não posso segurar vocês. Vocês são intangíveis.Vocês me escapam pela mão e vão embora pela vida ou pelo contrário dela.
Vocês estão indo e eu sinto.E eu sinto tanto que não consigo mais nada que não seja sentir.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

E, enquanto você falava, percebi que no seu braço esquerdo moravam cinco pintas pequenas dispostas em posições aleatórias e, aos poucos, percebi que elas formavam exatamente dois triângulos quase do mesmo tamanho.E eu, que nunca gostei de matemática, comecei a desenhar triângulos em você, enquanto você falava.Sei que seria mais bonito se eu desenhasse sorrisos, ou flores,mas talvez por falta de poesia eu só visse triângulos.Primeiramente, eu só havia visto quatro, e fiquei desenhando apenas um, com a quase triste sobra de uma pinta.Depois, por conta de você se virar rapidamente ou se mexer, eu vi que havia mais uma e, apesar de você estar brigando comigo, fiquei um pouco feliz, ou não diria feliz mas, sei lá, com uma sensação de enigma realizado.Agora, eu conseguia desenhar dois triângulos enquanto você falava.Foi assim que percebi que vivemos como em um filme.Em minhas lentes cinematográficas cor de marrom dos meus olhos, eu gravo cada detalhe.É como se a todo momento em que ali estou, eu estivesse decorando cada palavra, gesto, riso e cheiro,ou linhas e pintas do seu braço esquerdo.Decorando para visitar mais tarde, um dia, nos meus pensamentos.
...E assim vou vivendo,a te desenhar triângulos pelo corpo,enquanto você fala.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Mulher

Ele chegou sem perguntar meu nome.Apertou meu braço, me apertou toda. Não perguntou meu nome, nem função, nem nada.Ele chegou e resmungou sede e fome, bateu na mesa, pediu engrossado e comeu tudo ali na minha frente.Comeu como quem desbrava terra,abrindo, matando.Ele chegou sem perguntar meu nome e,na primeira noite, deitou ao meu lado.Ele chegou, me apertou, não perguntou minha função, resmungou e na quarta noite eu já dormia no chão e ele na cama.Ele chegou e me fez três filhos, bateu na minha mesa e pediu a janta, chegou tonto de botequim.Ele fede a cachaça cigarro mulher obra caminhão estrada suor.Não tirou retrato,não deu função aos meninos, não me acompanhou na missa nem na procissão.Ele chegou tomou minha cama, minha casa me fez três filhos ficou velho saiu voltou e ainda não perguntou meu nome minha função, nem nada.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Sinto-me poluída. Suja de tudo que já li ouvi senti vi aprendi.
Estou exausta de tantas teorias teses doutrinas histórias análises.
Gostaria de me descolorir, de me deixar
branca.Pura.
Ou preta.Pura.
Estou exausta.
Preciso urgentemente me esvaziar me cegar me ensurdecer
Preciso desaprender escapar
Emburrecer
Preciso atingir uma linha paralela flutuante que me escape os pés do mundo e mais
Que me escape a cabeça do mundo.
Estou exausta.
Preciso virar um feto.
Um vazio.
Preciso virar um corpo mudo.
Uma pureza.
Preciso de um único som uterino.Preciso de uma placenta.
Estou exausta.

Esquece tudo isso,
a verdade é que estou com saudade de casa.

domingo, 13 de junho de 2010

E, ao te conhecer,
eu que era poesia,
fiquei toda prosa!

terça-feira, 25 de maio de 2010

Uma menina de olhos livres

Hoje eu a vi lendo um livro.
Eu havia me oferecido para carregar a mochila dela.Ela não aceitou e, logo depois, vagando lugar, sentou-se bem na minha frente. Eu vi quando ela abriu a mochila e pegou o livro. Também já tinha visto seu colete, seu tennis e sua calça com cara de velha. Ela leu um pouco e eu vi que ela sorria enquanto lia.Depois, ela fechou o livro e, juro, ela falou umas três frases sozinha, fazendo caras e bocas. Eu notei também que ela tinha os olhos meio afastados um do outro, ou era o fato dela ser meio estrábica que me dava essa sensação.Eu vi que os olhos dela não iam os dois para o mesmo lugar e comecei a me questionar que tipo de força levava os dois olhos,de todas as pessoas do mundo que não ela,sempre para a mesma direção.
Enquanto eu vigiava os outros olhos do metrô, ela abriu um pote verde redondo, desses que a minha mãe guarda resto de comida,e tirou de lá uns biscoitos. Eu vi o jeito que ela comia. Ela comia muito feiamente.Seu jeito de mastigar não me deixava prestar atenção em mais nada naquele vagão.Comia com uma boca meio mole, parecia que a boca toda ia se desfazer, ia derreter com aqueles biscoitos.Voltando aos olhos,eles iam juntos,ou melhor, não juntos,mas iam se revirando descordenados sem ter a força comum dos outros olhos do vagão, buscando se coordenar com o derretimento da boca, ou não sei.

...Foi quando ela resolveu descer do metrô,e eu decidi que não havia mais ninguém para observar aquele dia, e preferi dormir até chegar na Central.

Mas os olhos, esses continuaram ali, no vagão.Enquanto ela foi embora,eles permaneceram ali,a desfrutar de toda uma liberdade vagabunda que os demais não têm.Eles continuaram ali no sonho de quem dorme com destino.
Olhos livres, libertinos.Cada um pra um lado, com seu destino, com sua vontade e com sua lei.
Livre-arbítrio.

E agora eu confesso,eu invejei os olhos dela.Olhos sem regras.Pareciam se comprazer no fato de serem diferentes, de não terem força alguma agindo sobre eles.Pareciam esnobar e rir ironicamente do resto dos olhos do mundo, todos cartesianos, resignados, andando juntos, quase marchando.

domingo, 23 de maio de 2010

Saudade,apesar de Saudade ser só o nome de um bairro de Barra Mansa.

Eu ainda prefiro ver Barra Mansa assim.
Como quem chega de ônibus virando ali na praça da Liberdade.
Naquele momento, eu vejo que tudo ainda continua intacto.
Como quem passa no corredor de vento que surge próximo a Igreja Matriz, mas antes de ali chegar, do outro lado da calçada, sente o cheiro de amendoim doce torrado. Como quem desce pela rua do lazer e,assim, como quem passa pela antiga Estação,e acha bonito de ver essa parte.Como quem desce, atravessando a linha do trem para chegar até o Parque Centenário e suas árvores e suas capivaras e seu lago e seu chafariz, mas não entra. Como quem olha de fora e é como quem decide se segue reto para tomar o melhor açaí ou se, após passar pela Biblioteca Municipal, pára e toma um café com as melhores carolinas de doce de leite na Palatos.
Se ainda não me canso,vou como quem estende a caminhada para atravessar a ponte dos arcos que me leva ao Sesc e aí,tudo se faz completo.

Eu vejo, sinto e sento.Vejo Barra Mansa. E sinto.
Sinto que eu ainda prefiro ver Barra Mansa assim.

Como o lugar que, mesmo que o mundo desabe atrás de mim, ao chegar, eu encontro um refujo.Um esconderijo. Eu vejo e sinto que mesmo que o mundo desabe, ela continuará ali, aqui.
O Chico Revolucionário continuará vendendo seus poemas na praça e só eu comprando, e a pipoca da Matriz sempre será a melhor, com ou sem queijo.Um pequeno mundo que se repete charmosamente.Uma vida que parece alheia não se importar com o os desabamentos da minha consciência. E que não importa o que acontecer, ela continuará ali,aqui.

Com o cheiro de amendoim, com a Estação, com as preguiças, com o sorvete de pistache da Mário Ramos e com a minha enorme Saudade,apesar de Saudade ser só o nome de um bairro de Barra Mansa.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

café.

E ela acordou para tomar o mundo feito um breakfast at tiffany's
e sabia que assim o faria:abrindo as janelas, sorrindo
e ouvindo moon river.
lento.
partindo de toda uma delicadeza compassada em forma de uma coreografia colorida de sonhos.
lenta.

"There's such a lot of world to see
We're after that same rainbow's end, waiting, round
the bend "

muito mundo pra ver,o mesmo arco-íris.
Eu não queria ser uma lembrança. Mas eu queria ser lembrada.
Eu queria ser lembrada, ser lembrança de cabeça de ponta da língua.
Eu queria sinapse na sua cabeça. Sinapse falando de mim.
Eu queria ser falada lembrada lembrança de Amélie de Isabelle de uma flor de unhas vermelhas de maionese de soja de soja com maionese de um filme de uma cor de um sorriso de uma palavra de uma mania de um jeito de uma história de um personagem de um gosto de uma cara. Eu queria ser lembrada. Por associação. Eu queria ser associada a imagens na sua cabeça. Na sua cuca.


Eu queria ser uma imagem pra você.Não só uma imagem,uma vitrine um símbolo, mas uma imagem.Eu queria ser uma imagem que se ligasse a algum conceito bonito. Inteligência dedicação essa tem um belo futuro na profissão beleza simpatia. Inteligência. Beleza.Inteligência.Beleza.

Eu queria ter sentido. Fazer sentido. Fazer. Ser. Ter.
Ser sólida.
Pra você.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

eight o'clock

Introdução: Praia Nublado Gringo Calçadão Caminhada Manhã

...E ela respondeu no seu inglês de curso:
-I've been walking here every morning at eight o'clock.
E ele disse:
-Oh!At eight, I have portuguese class... (em um tom meio vago de quem se lamenta)
E ela sorriu um sorriso amarelo de quem não se importa muito e foi...
Ele sorriu seu maior sorriso e decidiu que aprenderia português com ela.E nos dias que se seguiram, ele faltou para esperar ela passar.E esperou naquele banco naquele posto naquela praia naquele horário.
Mas naquela semana, um dia ela foi caminhar mais tarde e no outro dia choveu e no outro dia teve que levar o cachorro ao veterinário e no outro tinha que estudar e no outro teve preguiça e no outro, e no outro,e no outro dia também não foi.

Mas ele continuou ali, eight o'clock, todas as manhãs, porque era britânico.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Parece óbvio, mas não é:

Eu só posso ser aquilo que eu sou.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

A viagem.

Eu vi um corpo.
Eu vinha em pé e eu não veria o corpo.Minhas costas veriam o corpo, mas um lugar vagou, e eu sentei e, sem saber, preparei-me para no futuro ver o corpo.
Vínhamos e olhamos como quem olha qualquer batida-acidente-obra que engarrafa e pára o fluxo dos automóveis tão cedo ainda para ter trânsito, e ao lado ele disse o trânsito daqui já está parecendo com o de São Paulo,e quando passamos e olhamos, eu vi.
Eu vi o corpo e ao lado ele disse tá embrulhado, e estava.Mas eu não pude deixar de ver os sapatos do corpo.Eu vi o corpo como quem vê uma maçã.
E depois, quando o corpo já se tornara passado, pelo trânsito e pela morte,eu ainda pensava.
Pensei no corpo que pela manhã calçou-amarrou-olhou aqueles sapatos.Pensei que eu poderia estar na van, pensei que eu poderia estar no táxi, pensei que eu poderia estar no corpo.Mas o corpo não mexeu comigo.O corpo não pode mais se mexer. O corpo está morto.
E o corpo que agora já não era mais alguém.Era um corpo, era embrulhado, tinha sapatos.Sapatos que eu vi.
Eu vi um corpo.
Eu acho que tenho vivido como um corpo, sem ser alguém, pois sendo corpo.

"Morreu na contramão atrapalhando o trânsito"

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Eu queria mesmo era ser artista
sem nem saber o porquê sou.

domingo, 25 de abril de 2010

E os dias passaram a se passar assim.Preocupava-se em desarrumar a cama para ter que arrumá-la.Comer para abrir o apetite e ter que gastar tempo com a louça.(Por vezes, até chegou a lavar a louça mais de uma vez, na cisma de achar que havia uma mancha, gordura grudada, cheiro estranho.)
Dormia para ter que acordar
e gastar um tempo de reconhecimento da casa.Móveis cheiros lugares.
Ia à cozinha, virava a jarra d’água em um copo.Tomava.Sentava para tomar.Quem senta sozinha em sua própria cozinha para beber apenas um copo d’água? Mas tudo fazia parte da espera.Depois gastava um tempo com o banho, arrumava-se.
A espera:
(Desde que havia discutido e se privado do contato com os vizinhos, além da caixa de supermercado – trinta reais, senhora. Aquele era o contato mais próximo com a função de receptora da linguagem.)
Ela não sabe quando essa espera começou mas, sem sentir, por causa dela, passou a jantar mais cedo.Assim, dava tempo de lavar a louça, ajeitar a manta no sofá e, finalmente, ouvir:
-Boa noite!
Ao ligar a tevê, no jornal.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Alô?
Oi, sou eu.Eu não sei porque tô te ligando.Eu acho que.É que. Já era pra eu ter te ligado há tanto...Eu ando aqui à toa, tenho lembrado de você.Queria saber se está tudo bem, se sua filha continua morando em Portugal e se você continua com aquela saudade toda pela sua neta.Não sei.Acho que queria saber também se você ainda tá trabalhando, se está no mesmo lugar.Talvez eu te faça uma visita.Eu deveria ter feito essa visita há um ano, pra contar as novidades. Eu já mudei e já mudei de novo.De cidade, de faculdade.Não, de curso não.Você nunca me aconselhou no curso, talvez eu devesse ter perguntado.Alô?Você ta aí ainda? É. Queria saber se você ainda compra aqueles saquinhos de amendoim, não pra comer, mas pra ouvir o barulho e lembrar da sua amiga que morreu. Desculpa, mas é que eu nunca consegui esquecer dessa sua história.Ainda lembro dos seus olhos atrás da mesa, contando.Então, eu tô bem.É. Acho que tô sim.Então, vou desligar. Só queria dar um “alô” mesmo. Sei lá. Um oi. Saber se você tava bem e como vai a sua vida.É. Acho que vou desligar então.Beijo, Tcha.Ah, eu queria dizer que você. Você. Que eu gosto de você. Sempre gostei.Acho que.Deve.Deve ser por isso que senti vontade de ligar.Eu acho.É.Então.Então tá.Beijo,tchau!

domingo, 11 de abril de 2010

"os seres humanos me assombram"

A verdade é que há momentos de exaustão.
Surge em mim um cansaço muito grande provocado por sucessivos desapontamentos com a raça humana.
Raça essa, que não deixa de ser bonita, viva, colorida, ativa, interessante. Mas hoje, hoje não.
Hoje estou ainda um pouco intimidada por pessoas. Sinto-me acuada em uma redoma de razão, de várias razões e conceitos rígidos que criei para um abrigo todo meu.
Um abrigo que hipoteticamente me conforta.Não, não conforta.
Estou nutrindo um certo desdém por ser gente.
Por ser. Pelo ser. Pelo humano. Pelo pessoa.
Acho que vivendo, deve ser uma das piores sensações.
Nutrir desdém pela raça humana e ser humana é nutrir desdém por si,
é um soco no espelho.
Mas reconheço que cada decepção tem uma carga de culpa pessoal.Sendo humana, faz-se normal acreditar nos outros, confiar, dar a mão e, dentro disso, cria-se uma expectativa de correspondência sentimental.
Mas sentimento não se mede. Nunca se sabe se as paixões e os amores se equivalem ou,pelo menos, aproximam-se.Nunca vai saber.
Coisas que não existem de forma tangível como o sentimento, ou como a dor não entram em escala de medida.
Cada dor é única, cada sentimento é inédito no mundo metafísico das dores, ou dos sentimentos.
A verdade é que há momentos de exaustão.E esse é o meu.
Assombrada pelo humano, surge em mim um sentimento de me animalizar, de me zoomorfizar.
Trancada em minha mente, esquecer o código da linguagem. Parar de falar, de pensar, de escrever.Viver instintivamente. Sem hipocrisias, sem tentativas de sorriso,
sem ser gente.Ser bicho.

Março

Acho que por conta de estarmos nos falando e nos vendo menos.Acho que por conta da saudade. Acho que por conta da minha falta do que fazer em pleno mês de março.Mas eu não sei mesmo se por conta de tudo isso, porque foi algo que eu sempre gostei de fazer, independente de nossa freqüência, da saudade ou do mês de março.Talvez fosse um modo de eu sentir de forma concreta a força que as coisas tem pra acontecer, quando elas têm que acontecer.Gosto de lembrar a forma que se deu de nos conhecermos e traçar todos os caminhos paralelos, os possíveis caminhos que poderíamos ter feito para não nos encontrarmos naquela rua. Havia tanta coisa pra se fazer naquele dia e, se fôssemos exatamente pro mesmo lugar, não nos conheceríamos.Acho bonita essa coisa de traçar os fios, lembrar as histórias, as falas, as sensações. Eu sou tão repetitiva. Eu não sei por conta de quê caí nesses pensamentos. Eu tava lendo um conto bonito, que achei bonito e que me lembrou você.Não tinha nada a ver com você, mas me lembrou você. Acho que por conta de estarmos nos falando e nos vendo menos.Acho que por conta da saudade. Acho que por conta da minha falta do que fazer em pleno mês de março.Mas eu não sei mesmo se por conta de tudo isso, porque foi algo que eu sempre gostei de fazer, independente de nossa freqüência, da saudade ou do mês de março.

Volta às aulas

Morar sozinha é descobrir que o leite não nasce na geladeira.
Na verdade, ele nem nasce.
Morando sozinha, descobre-se que o leite, na verdade, vem da vaca, que mora em um lugar distante, bem distante da cidade grande,onde predomina o verde, a chamada fazenda.
Na fazenda, há profissionais encarregados de tirar o leite que não é para alimentar os bezerros, mas nós. O leite é tratado com os devidos processos (desconhecidos por mim) para torná-lo "industrializado" e, depois de embalados em saquinhos, caixinhas, latinhas, ele é levado por um caminhão aos supermercados. Lá nos supermercados, eles ficam nas prateleiras para as pessoas que moram sozinhas comprarem, ou os papais, vovós e titias de quem não mora sozinho os encontra e troca pela moeda corrente local. Eles levam o leite para casa e o colocam na geladeira, onde as pessoas que não moram sozinhas vão achar que ele nasce.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

pretérito imperfeito

Com os olhos que se olhou no espelho, sentiu o perfume que borrifava em si.Olhou suas mãos magras e brancas de quem já perdeu o colorido do sol.Sentindo um cansaço ainda de quem fica na cama depois das dez, saiu.
Olhando o sinal que fechava o carro que passava o moço que vestia azul a gravata que combinava a velhinha que atravessava o garoto que pedia esmola (em pleno cartão postal) a mulher que corria o homem que bebia o sol que tostava o garoto que roubava (em pleno cartão postal) a grávida que sorria o corpo que se despia a criança que pulava a onda que batia a mãe que gritava o caminhão que freava o ônibus que atendia.Sentia.Amava.

sábado, 27 de março de 2010

Poesia marginal

Era uma vez o Hiato Criativo.
-Eis aqui um espaço em branco:








.melhor representado pelo meu cérebro.

sábado, 13 de março de 2010

Morna

Às vezes sinto que não vivo. Queria tanto viver...
Queria viver muito, o tempo todo. Queria me manter viva, estar viva.
Eu queria ser intensa, entregue na vida. Eu queria
ser
o tempo todo.
Eu queria ser excessiva.Cansar de mim.Eu queria ser toda excessos.
Eu queria ser profunda, intensa.
Queria gritar, ou ficar totalmente muda.
Eu queria amar amar amar amar. Odiar odiar odiar odiar.
Eu queria
estar
quando sou.
Mas eu tenho sempre a impressão de que apenas vagueio. Flutuo.
Eu tenho sempre a impressão de ser transparente.
Volátil, sinto-me um vapor, um gás,
no qual ninguém consegue tocar, pegar, com quem ninguém consegue estar.
Sinto ser em todos os lugares e não estar nunca.
Sinto estar em todos os lugares e não ser nunca.
Sinto estar diante de uma vitrine de mim.

terça-feira, 9 de março de 2010

Mas não tem jeito, meu bem.Chega uma hora na vida em que a gente tem que ser feliz, é inevitável.

Angústias compõem a vida. Não existe vida sem angústia e, quando há fases sem elas, é necessário tirarmos das mangas de camisa algo que nos angustie, nos questione, nos inquiete. Eu, pelo menos, sou assim. Pode ser algo como uma patologia, um masoquismo na alma, um nó na cabeça, mas eu sou assim. Guardo dentro de mim o que chamo de “conflitos-chave”, algo como questões fabulosas para eu me torturar, questionando, quando minha vida estiver em boa maré.
Naqueles momentos em que tudo estiver dando certo, tudo se arranjando e, então,bater aquele medo de,de repente,acontecer algo muito ruim, uma grande tragédia,enfim, nessas horas então eu vou e me consolo.Consolo-me justificando que ainda tenho muitas angústias na vida, muitas dificuldades. Vou lá e puxo os tais conflitos, para passar dias pensando, dias sofrendo, até aparecer algo maior e eu guardá-los.São questões que talvez eu saiba que eu nunca vou definir, nunca vou resolver. O tempo talvez vá passar e talvez elas se resolvam por si,tomem outro rumo, aí então,eu as buscarei pra sofrer do arrependimento. Mas o fato é esse : não sei se baseada em mim, mas eu creio que o ser humano tem essa necessidade de sofrer, nem que seja em pequenas doses de angústia própria, sofrimento mental, situações hipotéticas. Quando não se sofre “de verdade”, ou seja, passa-se fome, tem doença, morte de alguém amado, entre outros, cria-se.
Cria-se dor pra alimentar o viver.

...Mas não tem jeito, meu bem, chega uma hora na vida em que a gente tem que ser feliz, é inevitável.
E olhou pela janela
E percebeu que havia conquistado

tudo

o que queria:
letra, par, música, domingo,lugar, sorriso.

O que querer depois do tudo?

quinta-feira, 4 de março de 2010

o segredo

Possuía-se de uma alegria filha única, uma felicidade que morava toda em seu peito de uma forma ímpar. Ia andando como se cada passo fosse conduzir ao próximo segundo de êxtase da sensação. Não sabia de onde vinha, mas o riso a tinha toda por dentro.Seu corpo detinha uma radiosa energia luxuosa no meio da rua, o que provocava ser quase pedante a situação: Como poderia uma garota ali, sozinha, no meio da rua, sem motivo,ser dona daquele sentimento todo ?
Ao cruzar a esquina, viu-se mal iluminada na rua que ficava deserta ao passar das sete e um pouco depois de sair da sombra da árvore, em um trecho mal pegado pelos postes, ela não resistiu.
Ali sozinha, vendo ninguém, ela sorriu.
Como se sorrir sozinha, no meio da rua, fosse um ato clandestino. Como se a fossem julgar louca ou doente. Ela sorriu como quem cometia um crime, como quem amava em segredo, como quem abafa um suspiro.
Sorriu pra sentir.
Sorriu pra denunciar toda essa felicidade.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Por alguns dias perdera o viço.Empalidecera assim de cara. Meio amarela. O corpo não obedecia com tanta destreza, pesado.
Os peitos pareciam carregar duas pedras.A barriga, uma.
Pesada.Mole.De repente, veio uma dor meio funda contornando toda a região abdominal, e ela se contorceu na areia.Sentiu entre as pernas,um líquido quente.Passou a mão, era sangue.Julieta criada sem mãe e sem avó achou que iria morrer.Ainda sem agüentar muito o próprio corpo correu até uma antiga venda abandonada e se deitou.Deitou e esperou a morte.Sangrou, sangrou, sangrou. Por três ou quatro dias ficou ali. Parada. Deitada, sangrando e esperando a morte chegar. Sozinha. Sem mãe, sem avó. Mas Julieta não morreu, e depois parou de sangrar, voltou à lida.



Há algum tempo se sentia meio estranha. Mas Julieta não se preocupava muito em sentir.Ela não sabia muito bem o que era sentir.Mas naquele dia começou a sentir uma dor muito forte.Dor, Julieta sabia o que era, e que sentia. Por alguns dias perdera o viço. Empalidecera assim de cara. Meio amarela. O corpo não obedecia com tanta destreza, pesado.
Os peitos pareciam carregar duas pedras. A barriga, uma.
Pesada.Mole.De repente, veio uma dor meio funda contornando toda a região abdominal, e ela se contorceu na areia.Sentiu entre as pernas,uma coisa.Fazendo força, urrando, suando, sentindo, sentindo, Julieta sentia.E de dentro de Julieta, saiu uma pessoa, uma criança nascida.Sozinha.Sem mãe, sem avó.Julieta sentiu, e depois parou de sentir, voltou à lida.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Branco

Adoro ficar parada ouvindo o som do silêncio.
E os sons que rasgam o ar.
Como uma única mosca que sozinha está a 1 km de mim.
Como o ar sendo empurrado por um ventilador distante (De onde vem o vento?)
Como o som da minha voz sussurrada que cutuca o ar e rasga o silêncio.
Adoro ver o silêncio.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Sobre dois

(para Filipe Alves e Jaisah Farah)

De repente, ainda vejo aqueles três jovens ali.
Naquela noite, escolhemos o escuro pra nos despir.
Quando vi, assim , de longe de mim,estávamos nus de alma,sentados, parados, falando.
Ela não parava de fumar, eu de chorar e ele de falar frases alternadas com risadas nervosas.
De repente, falamos tudo. Tudo o que nos continha.
O que nos continha,nos freava.
O que nos continha, o que tínhamos dentro de nós.
Três costas olhando pro nada.Não lembro se tinha lua, mas era noite.
Hoje eu sinto muita falta de vocês.Às vezes me pego achando que vocês foram duas das maiores razões por eu ter parado naquele lugar assim, pela vida.
Hoje vejo cada um indo pra um rumo diferente,
mas ainda os vejo ali, os três
parados
chorando,fumando, falando
e amando.


Amo vocês,
beijos, da Isa mongol.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

15 de fevereiro





Segunda-feira de carnaval.
Ainda a imagino assim. Linda.
A mãe,uma personagem cigana, no meio dos foliões, sente a contração.
Pára.E Pari.
Pára ali e nasce ela.
Eu ainda a imagino assim. A mãe estirada no chão, com
uma languidez de quem traz gente ao mundo.
E ela,
saída de uma vida, para outra.
Entre confetes, entre serpetinas.
O mundo que resolveu fazer para ela uma festa.O carnaval.
O mundo que criou música digna dessa festa. O samba.
O mundo que há anos e mais anos
festeja muito mesmo antes de ela nascer.
Pode ficar bonito se pensarmos que
o mundo faz essa festa há muito esperando o dia em que nasça dela, Ela.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

De fevereiro

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

(Carlos Drummond de Andrade)



Quando nasci veio um anjo safado
O chato do querubim
E decretou que eu estava predestinado
A ser errado assim.

(Chico Buarque)




Quando eu nasci, não veio anjo nenhum.
Era fevereiro e
tavam todos pulando carnaval.

(Karol)

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Peixe

Silenciosamente e devagar escrevo
pra ouvir o som da caneta (preta) riscando o papel (branco). Dessa vez, escrevo.
Ainda não lembrava do prazer que as fitas me traziam.
Foi portando meu malabares laranja laranja que subi ao céu.Meu céu.Meu céu com chão cimentado.O telhado do meu quarto, o princípio dos meus sonhos.

(Calma!Escreva mais devagar para que eu possa notar as curvas dessas letras femininas e a sonoridade da caneta que risca.)

Lá fiquei. Fiquei até que a próxima música que tocasse,aleatoriamente, decidisse meu próximo destino.
Lá fiquei até que aparecesse, ou até que eu visse, a primeira estrela daquela tarde.
E foi bom perceber que em mim ainda mora uma menina doce, que olha estrela e chora, abaixando a cabeça assim de lado, sorrindo chorando.
-Au revoir! - disse a menina, que mora em mim, às nuvens.
E mais tarde foi ver o corpo colando molhado no azulejo.
E mais tarde o caetano cantando sobre samba, sobre amor e sobre até mais tarde.
E então caiu de cansaço, sorriu, e dormiu.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

hoje, sem poesia

Eu queria nunca ter ido pra Rural, assim eu não sofreria tudo que eu sofro com a falta dela.
E abdicar de todos os prazeres que me foram dados lá?E abdicar de tudo e todos que conheci e das experiências que tive?

Eu não sei, merda, eu não sei.
Eu não sei e estou cansada de minhas próprias perguntas.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O corpo mudo.

"Só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu." Nelson Rodrigues.

-Sabe, eu ouvi uma frase do Nelson Rodrigues esses dias que me fez pensar uma coisa...
-Qual?
-Não lembro, mas era alguma coisa como o rosto é indecente, o corpo não é...
Eu tava até conversando com o Filipe depois, quando ouvi isso.Eu acho isso muito verdade.O rosto tem muito mais chance de variação do que o corpo.O corpo tá ali. Tirando as variações dos dois sexos, só muda a cor e se é mais cheio ou menos cheio.
-Claro que não, Isabela. O corpo pode variar muito também. Tem gente que tem mais peito, menos peito, quadril maior, barriga caída, perna grossa...
-Eu acho, portanto, que seria válido usarmos miniburcas, assim, de forma que só cobrisse o rosto. Como se a roupa ao invés de ser no corpo, fosse no rosto. E andaríamos nus...
-Nossa, que cena linda, heinh?
-Não, não. Eu acho que teríamos que usar cueca e calcinha também, por uma questão de higiene.Afinal,ninguém fica esfregando o rosto em cadeira, né?
-Hahahahaha. Que idéia louca! Eu ainda acho que o corpo varia...
-Tá, pode variar. Mas o corpo não seduz. O corpo não é nada. O corpo fica ali parado, sem identidade. O corpo é só instumento. Ele não fala, ele não envolve. Ele é cru.Ele é morto.
-É...Tem gente que fala com os olhos, né?Em compensação, tem gente que não fala nem com o rosto.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

"-Apenas não se esqueça do que aconteceu ao homem que conseguiu ter tudo o que desejava...
- o que aconteceu?
-ele viveu feliz para sempre."

domingo, 31 de janeiro de 2010

Sem

Hoje eu não quero discutir política,
não pretendo saber sobre as desigualdades sociais,
nem se quero ter alguma atividade missionária de preservação das aldeias do Xingu nos próximos 5 anos.
Hoje não tô no clima de tentar entender Foucault,
e só por hoje não me importo se os responsáveis pelo vazamento de óleo na Baía de Guanabara não foram punidos. Hoje eu nem sei mais se crime ambiental prescreve ou não.
Acordei sem vontade de me culpar por não ter posição política definida
e evito saber tanto da grande enchente de Barra Mansa ou dos desastres no Haiti.
Hoje não vou chamar a humanidade toda de hipócrita e não vou condenar o cinismo.
Não vou procurar saber se o Joel Santana vai dar conta do Botafogo, mesmo com o time tão ruim.
Não tô com saco pra ser politicamente correta e talvez eu até jogue lixo no chão.
Não quero nem saber se o aquecimento global existe ou é uma teoria da conspiração e se o homem pisou na lua.
Não vou crucificar a Jovem Guarda nem nenhuma outra música da década de 60 e 70 que não tenha conteúdo político.

Hoje vou sentar aqui, tomar uma cerveja e ouvir um samba, ou até mesmo ouvir o Roberto.Porque hoje, nem odiar o Roberto eu vou.

sábado, 30 de janeiro de 2010

O pedido.

Adoro quando ela chega assim de manhã.
Uma morenice lavada de cara e de corpo. Um cheiro de banho, os cabelos molhados de uma água fria.
Adoro quando ela chega assim, com roupa de casa, ainda de chinelas. O cabelo meio sem jeito, a cara meio de sono.
Chega, aperta os olhos, às vezes torce a boca como que fazendo movimentos pra lembrar o pedido que me faz todos os dias igual:

-três pães, por favor.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Eu estou mesmo mobilizada por uma tristeza única, de música suave.

Escrevo agora pela angústia que me toma o peito.
Ainda me preocupo muito com o envelhecimento dos meus óvulos enquanto o mundo gira.
Uma mulher que sonha ser mãe e sonha mais.Sonha um mundo.
Enquanto eu fico sonhando, espero a hora de partir. Enquanto eu fico fantasiando coisas que só existem para mim, o mundo continua existindo e eu não me dou conta.
Vivo encenando uma vida só minha, sem público, sem platéia. É triste. Choro. Escrevo para me desafogar. Não sei quem lê. Só sei dessa minha angústia em querer assistir o mundo de fora.Só sei desse meu medo de viver e, ao mesmo tempo, essa vontade louca de tê-lo todo sobre meu domínio.Desvendar cada canto dele,só,sozinha, e acompanhada.Não sei bem do que falo e, nesse momento, as coisas se confundem. Os papéis, os idiomas, as cenas. Acho que hoje não é um dia bom para mim. É dia de fazer o carro morrer.Não são os hormônios.
Eu estou mesmo mobilizada por uma tristeza única, de música suave.
Ouço uma menina chorando de soluçar dentro de mim e não a consigo encontrar.O choro me persegue e eu preciso achar esse fio de choro pra entrar nesse ritmo e me desafogar, junto com a menininha.

Vim parar no mundo sendo menina com um olhar triste.
Desde menina, um olhar triste.
Com o tempo fui aprendendo. Aprendi a me fantasiar.
Então foi assim. Aprendi a acordar e vestir a fantasia como fosse mesmo um personagem.Assim, dia por dia, vestindo uma fantasia pra viver cada vida.
O colorido e as flores vem como uma forma de desviar a atenção de quem vê aqueles olhos que são tristes. Aí vem o cabelo comprido que enlaça, embaraça pra distrair e dar a intenção de leveza. Tudo calculado para parecer e disfarçar os olhos.
Os olhos. O olhar triste.
...Mas há dias em que a fantasia não cabe.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Amarelo

Como quem bebe um aguado suco de caju precisa lembrar que a água suja que bebe é caju, eu precisava sorver aquele dia, imaginando que era um dia bom.
Fingindo.
Mas eu tô cansada demais de colocar a jarra de suco de caju desbotado em uma parede branca para ver que ele é amarelo,que é de caju, e não é uma água suja apenas.
Beber pensando que bebe caju. Cansada.
Eu quero o amarelo manga, mesmo odiando manga.Porque se,ao menos, o suco fosse de manga, ele seria algo no meu mundo. Ele seria algo para eu odiar. Se aquele dia não fosse tão desbotado, e fosse manga, eu seria capaz de sentir algo por ele.
Mesmo que fosse o ódio que sinto pelo gosto da manga, mas não por seu amarelo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010


No meu dicionário, a fotografia é o método de eternizar sorrisos.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

le petit prince




-Por favor...cativa-me! disse ela.
-Bem quisera, disse o principezinho, mas eu não tenho muito tempo.Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
-A gente só conhece bem as coisas que cativou,disse a raposa(...)
-Que é preciso fazer?perguntou o principezinho.
-É preciso ser paciente, respondeu a raposa.Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim,na relva.Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada.A linguagem é a fonte de mal-entendidos.Mas, cada dia,te sentarás mais perto...

No dia seguinte o principezinho voltou.
-Teria sido melhor voltares à mesma hora,disse a raposa.Se tu vens,por exemplo,às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz(...)

domingo, 17 de janeiro de 2010

Ressaca.

Por que você teima em ser assim, garota?Por que você é teimosa em se evitar?Você, que parece viver em uma redoma como a Rosa de Bela.Nascida incompleta parece viver e tendendo a nunca se completar.Uma incompletude completa para sempre será?Menina bonita que se evita, por que chora?Você não tem o direito de chorar, porque não se dá o direito de sofrer por amor.Se esquiva, arisca.Foge, some,escorrega.Vai viver triste. Teimosa teima em traçar destino futuro criança cachorro sotaque.Uma coisa que acontece na cabeça e desce pro peito,pressionando o coração que não sente, em sua função única de pulsar o sangue.Uma angústia que mata o peito da menina que sofre por não conseguir sofrer de amor.Que será feito dela então?Singularmente uma fria carinhosa que passa pela vida e não a entende. Quer um par e não consegue se entregar. O que a trava? O que a faz chorar tanto sem saber, coberta de uma tristeza bonita de músicas de lamentos de peitos de frases...Por que ela teima em procurar pra não achar?Por que ela não sente, mas procura tanto a solidão? Que medo há?Que arte há nisso? Tão calma cansada de calma.Ela se acha atriz, uma estrangeira fazendo seu papel na própria vida.
O filme é triste.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Tempo de Alice.

Alice aos três já mostra espírito aventureiro quando
solta da minha mão para descer as escadas
sozinha
Alice tem o cabelo amarelo e os olhos pretos de cílios
gigantes parecendo um bicho
mas em Alice fica lindo.
Alice fala paia, porque não fala r ainda,
mas fala em alemão quando nervosa.
Ela tem um peixe laranja e escolheu dar de presente ao padrinho
um carro ou um interruptor.
Quando apertada, faz xixi de cadeirinha no meio da rua
e depois me pergunta por que é que o menino que dorme na rua está sem chinelos.
Eu e Alice sentadas tomamos picolé no sol.
Alice disse:
-É tão bom que até dá vontade de sorrir, né tia Isabela?

domingo, 10 de janeiro de 2010

Recado

Ela lhe deixou um recado pregado pelo canto na ponta do papel na cortiça.
Eu li e senti. Assim dizia:

"Saudade enorme de conversar com você.Conversa do tipo
fiada, afiada ou sem fio.
Às vezes parece que a linguagem do mundo tá escrita em Mandarim ou
sou ruim de ler."

Ele disse..."poética", sem nem pedir licença.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Patuá

Eu que não creio em astrologia,
combinação de estrela
e acho que planeta não tem casa.
Eu que não acredito em horóscopo,
bruxaria, magia, psicologia, homeopatia,
subversão.
Eu que não faço pedido a santo, não faço promessa,
não deixo trabalho em encruzilhada, não peço,
não rogo, não ajoelho, não faço mandinga.
Eu que não faço figa, não uso patuá, não entendo mapa astral, não vejo aura.
Eu que acho que energia, só elétrica.
Eu que não pulo sete ondinhas,passo debaixo de escada, tenho em casa gato preto
e saio pra dançar em sexta-feira 13.
Eu que tudo isso que sou,
de repente, fiz pedido à estrela que me desse você,
e pulei onda, e rezei bem forte, e coloquei flor pra Iemanjá, e comprei pimenta,e pedi 7 vezes:
você você você você você você você.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Uma ponta de nó de céu


Do Drummond pra Fabi, da Fabi para mim, de mim para você, com beijos:

"ponha a saia mais leve, aquela de chita e passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com
margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado,
saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim. Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem
passe debaixo de sua janela.
Ponha intenções de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse
repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a
dizer frases sutis e palavras de galantearia."

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