Quando meus pés cruzaram a portaria foram os mesmos que desceram o elevador e abotoei o último botão esquecido da blusa na hora que cruzei a porta, batendo-a devagar pra não acordar ninguém do apartamento que eu saí me despedindo com os olhos da telelista que fica em cima do guarda roupa e do livro TRO PI CÁ LIA que está em cima dos seus vinis.Porque foi antes do meus pés cruzarem a portaria que eu comecei a sentir a dor.
Foi quando ele começou a falar e não consegui mais me mexer.
Falência múltipla dos órgãos esclerose múltipla acelerada instantânea paralisia facial corporal.
Eu sabia que a dor era mental. Eu sabia que era psicológica.Cabeça. Cerebral.
Mas continuei ali,sentindo a dor. Eu queria sentir a dor como quem se pune. Opus dei de mim.Eu queria sentir toda a dor. Penitência física. Mortificação corporal.
De repente, o que era mental ficou tangível demais e eu já o sentia no meu corpo.
Ainda estava paralisada.
Eu não sabia onde doía. A dor produzida pela cabeça tinha sofrido metástase e eu não conseguia saber onde doía.Não tinha modo de estancar o sangue.Não tinha sangue. Era dor interna.E continuava paralisada.
Foi quando ele começou a falar que começou a dor e que não consegui mais me mexer.
Depois os olhos começaram a passear e eu comecei a decorar o apartamento, paralisada, para poder guardá-lo pra mim.
Eu decorei aquelas falhas na parede que tem ao lado da cama e também como o fio da luz vem do teto e chega ao interruptor por uma espécie de caixinha branca que deve ter por função social esconder fios.Eu decorei o apartamento e vi que no dia que comecei a sentir a dor, antes dos meus pés cruzarem a portaria, havia dois copos esquecidos sujos na mesa do computador.
Como quem se despede do apartamento.Como quem chora.
Eu não sei que dor é essa.Eu sei.
Eu sempre bati pé que problema na vida era morte ou doença.
Mas hoje me permito sofrer por amor, mesmo sabendo que há fome na África.
E dói.