terça-feira, 12 de junho de 2018

Às vezes elas falam cobrindo a mão o telefone, eu sinto pelo som abafado que dá, presumo que estão no trabalho e ninguém sabe. Às vezes chegam com sotaque bem forte e apressado, eu acho bonito. Às vezes elas falam pacientes comigo enquanto gritam com os outros filhos ao lado, eu acho graça. Às vezes eu ouço quando elas choram. Às vezes ouço muito. Às vezes consigo perceber quando estão sorrindo do outro lado, geralmente também estou sorrindo aqui: sim, ele vai pra casa. Às vezes me tratam como amiga, como filha e até como mãe. E quando elas vêm, às vezes trazem as outras crianças, às vezes trazem presente, e já me trouxeram a foto deles para eu conhecer. Mas por duas vezes eu não sabia nada. Elas vieram com a voz familiar e eu já ia falar o que sempre falo, mas elas me interromperam, as duas falaram o meu nome, as duas me tinham como conhecida: Isabela, ele foi executado. As duas, os dois, pela mesma mão, a do Estado. Eu não sabia, mas vou seguir pra saber.
As palavras conversam. Dei com um Ferreira Gullar de capa vermelha, senti saudade quando encontrava o velho andando ali pela Duvivier, tão meu vizinho, e sentia um contentamento de quem vê um poeta “o preço do feijão já não cabe no poema” ficava repetindo na cabeça enquanto sorria no peito. Dei com um Ferreira Gullar de capa vermelha que tinha por título “Dentro da Noite veloz”. Aquilo ficou como que chiando no meu ouvido de modo que resolvi conversar com ele e lembrei: era uma música da Calcanhoto. Foi assim que descobri o que já sabia no coração: à noite, no escuro, as palavras conversam.

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