quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Melinda e Melinda

Eu já não tinha mais quatro anos de idade quando experimentei o que experimentei.
Eu, uma mulher casada,42 anos, mãe de dois filhos.
Estava cansada e o dia havia sido cheio de fumaça demais.Eu estava cheirando a envelope de papel pardo e minha cara era uma repartição pública quando vi o pote bonito na bancada do banheiro de Iolanda.
Meu rosto suado,meu corpo melado de uma umidade relativa do ar e minha pele já amarelada demais de uma maquiagem das seis da manhã derretida.
Sentei no vaso e urinei uma urina quente enquanto meus olhos não se importavam com o calor do meu próprio excremento e se preocupavam em olhar o pote que não parava de me olhar também, desde que entrei no banheiro.
O pote era de vidro com umas formas meio quadradas e as arestas grossas davam um tom esverdeado quando se encontravam.Dentro: a delícia.O sabonete líquido era de um branco perolado que dava umas nuances em lilás,tão leves, como que pinceladas ao redor do líquido cremoso.Era uma forma tão cremosa que dava a idéia de uma profundeza,como quando se abre e fecha a boca sem deixar que se toquem os dentes.A verdade é que aquela cor cremosa havia me envolvido.
A cena talvez não tenha acontecido assim,mas para mim foi em câmera lenta.Levantei-me e ainda mijada pelas pernas, fui com o dedo indicador buscando o pote sem minha cabeça mandar e meu dedo apertou o botão do pote.Eu vi meu dedo apertar quando eu ainda não pensava em fazer isso.Era como se uma Melinda tivesse saído da Melinda que eu sou para me ver ali, apertando o botão.
Foi o creme, o sabonete líquido que eu vi escorrer em meu dedo indicador depois.A outra Melinda, a que eu via fazendo as ações para a Melinda que eu sou, foi levando o dedo a boca e aconteceu.As duas mulheres que eu sou se encontraram no momento em que veio o gosto a boca.O gosto do sabonete líquido.Um gosto amargo envolveu a minha boca, e o gosto era tão amargo que eu não posso mais descrevê-lo de outra forma a não ser amargo,ou porque o amargo gosto pode ter arrancado minhas palavras da superfície da língua ou, apenas, as emudeceu.
Bebi, comi, senti sim o sabonete em minha língua, e meio tonta e transtornada,sentindo-me louca fui já completa por duas Melindas, enfiando água goela abaixo, desesperadamente, como que para apagar aquela loucura.
E bebi uma água toda da torneira,bebendo como se tivesse sede de sanidade.Tanta água que meu estômago doendo me fez escorregar na parede, buscando sentar no chão.
Arrotei. Arrotei ali sentada no chão do banheiro de Iolanda.Arrotei um arroto amargo do sabonete, e da minha boca começaram a sair bolhas de sabonete líquido peroladas como ele, lilás como ele.
E eu ali, sentada no chão, via o pote, via a bolha nadando no ar.
Via a minha vida.A vida de quem vive mesmo em bolha.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

-Esse fumo é levinho,né..?
-Não sei.Eu não tenho como saber se é leve se eu não conheço o pesado.
A gente só conhece algo, se conhecer seu oposto.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Romance.

Às vezes, tenho em mim
uma vontade de ter um amor de tarde,cor de laranja.
Quando acordo à tardinha,e meu pé nu encontra a réstia de sol que entra pelo vão da persiana de palha.
Quando vejo um vestido de algodão branco bonito pendurado e me dizendo que quer sair pra passear.tomar sorvete de pistache. de mãos dadas.
E aí, é quando tenho em mim assim, essa vontade de ter um amor de tarde,
da cor de laranja.

domingo, 15 de novembro de 2009

Carta ao leitor

Querido José,

Acabo de chegar em casa e já te escrevo ainda com fome, visto que já passa do meio-dia.Escrevo-te como que pra me desafogar do que passei ainda pouco. Venho de uma ciranda linda de teatro que aconteceu ainda ali, na praça da minha cidade.Fomos em procissão,saindo da Igreja Matriz, passando pela antiga Estação e saindo no Parque Centenário, a Floresta Amazônica da pequenina Barra Mansa.Escrevo pra te escrever o que foi que vi. Lindo.Gente cheia de panos, cheia de cores.Havia tambor e batuque, havia caboclo, havia tipo capoeira, havia Santa Luzia, havia sangue,
havia tanta vida, José, que eu nem sei mais se vivo de verdade.
Chorei naquele começo, quando eles falavam do jagunço, da gente que nasce da poeira, de Canudos.
Canudos não se rendeu,José, não se rendeu.
Chorei porque foi Euclides da Cunha,porque foi uma criança,órfão sobrevivente do sangue,
Chorei porque era voz de um jaguncinho. Foi muita cor, Zé, muita cor.
Chorei porque parece que perdi muito tempo enquanto eu podia estar ali um dia também, não fosse o passado e a pior dor é a do arrependimento.
É chegada a hora, José. Eu preciso partir.Foi por isso que fui pra capital e larguei aquele antigo sonho do qual você ainda faz parte.É chegada a hora. Eu preciso me render a essa coisa que me faz chorar e ficar do jeito que fico, sem conseguir apagar o riso.Não, não penso em largar as leis. Gosto delas, até posso dizer que estou me apaixonando por elas.Elas também já me fizeram chorar de beleza.Elas são meio pálidas, eu sei,ou melhor, elas são cinzas, não, elas são preto e branco. Não têm cor, mas eu gosto delas.Não penso em largá-las, mas preciso viver isso que digo, a cor, o som, e aquele cheiro que sinto desde pequena desse lugar.
Desde pequena...

Obrigada por me ouvir, José.
Um beijo,

Isabela

meu verso de domingo

...E em uma linda manhã de sol
nasceram Bianca, Karolina e Jaisinha
Apesar dos meios tecnológicos,eu,
pouco convencional,
não sabia que tinha no ventre:
três pedrinhas!

sábado, 14 de novembro de 2009

çar



..çar.

A desculpa: porque a minha saudade desse lugar ultrapassa o enquadramento da foto.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Pedra que pariu, que dor!
A dor vinha me consumindo de tal modo que, se me perguntassem se ela havia passado, eu não saberia responder.Eu não sei mais se sinto dor,porque acabo achando que sempre fui assim:eu e ela, mas nem mesmo separadas, então, só eu.e ela dentro, fazendo parte de mim, do eu.Ela.É que a dor já tinha tomado conta de mim, ela agora era uma Isabela também, ou um pedaço, uma isabelinha.A dor era como um órgão novo meu.A dor havia se alojado ali de tal forma que eu não conseguia entender como era a vida sem ela.Era como se eu não conseguisse imaginar o que era viver sem dor,fazer coisas se sentindo sem a dor.E, assim, na minha cabeça, ela parecia que nunca mais iria passar, porque eu não conhecia mais uma vida sem aquela dor.A dor estava ali, como se eu não a tivesse mais, porque eu havia me habituado a ela, talvez até tomado afeição a ela, como uma filha no meu ventre.A dor agora era uma coisa minha, como uma coceira momentânea, uma mania de piscar os olhos. A dor fazia parte de mim.

domingo, 1 de novembro de 2009

O presente

Segundos fiquei, parada.anestesiada.prestando toda a minha atenção no forte cheiro de cigarro que parecia sair de cada poro daquele corpo velho.O cheiro parecia ser de cigarro velho e novo,misturado, amanhecido, um em cima do outro como que pra suprir uma necessidade.Com ou sem café,não sei.Não sei,porque o cheiro forte do cigarro me deixava meio sonâmbula ao meio-dia. Mas era forte e parecia ser tão dominador e extravagante que tinha assim,uma necessidade de sair em odor.Como que transbordando,como se cada poro fosse, para o cigarro, sua válvula de escape naquele imenso container chamado de corpo velho do homem.Mas o cheiro não me incomodava, apenas prendia a minha atenção, com ou sem vento.
O vento que veio, veio do nada e derrubou os livros nas nossas caras, mas isso foi antes de eu vê-lo, e ver o cheiro de cigarro forte que já citei.
Houve uma discussão, eu lembro que houve. Entre mim e ele. Mas eu não sei dizer o que eu disse direito, nem o que ele disse. Algo como Claricenãoépiegas.Nuncaliliteraturafrancesa.leiomaisliteraturabrasileira. Como?
Assim mesmo, com o cheiro ainda tentando me impregnar os cabelos, eu vi a cena. Quando falei de literatura brasileira, ele fez um misto de arrepio, uma ojeriza interessante de se ver, um jeito de se arrepolhar os lábios e apertar os olhos quase como meu irmão quando come maionese.
Eu não sei o que se deu. Agora, relembrando pra poder contar, é como se eu tivesse ficado surda e perdido todos os sentidos quando bateu aquele cheiro. O forte.O do cigarro. Eu só sei que o que se deu foi ele me entregando a sacola verde com os três livros de literatura francesa que eu não havia pagado. As minhas mãos se esticando em um gesto reprovativo ao gesto dele e seu caminho ido. Foi.
E eu ali, no meio do Largo, cheia de razão e meio surda, sonâmbula.Impregnada por uma fumaça de cigarro que nunca se levantou. Eu fiquei parada. Eu e três livros de literatura francesa.

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