sexta-feira, 16 de julho de 2010

Pão e renda

Quinco vivia de fazer pão.
Quinco acordava ainda de noite pra fazer pão.
Quinco não sabia que na vida poderia fazer outra coisa que não fazer pão que Quinco aprendeu de ofício com o avô que ensinou o pai e foi ensinado pelo bisavô e que foi ensinado pelo tataravô de Quinco.
Mas na vida, Quinco gostava de fazer pão.
Um dia, Quinco conheceu Julieta.
Julieta moça rendeira que de tanto fazer renda tinha os olhos bem miúdos pra modo de enxergar cada caminho que a agulha vinha de fazer dançar a linha no pano.
Julieta fazia renda a tarde inteira.
Julieta não sabia que poderia fazer outra coisa que não fazer renda que Julieta aprendeu com a avó que ensinou a mãe que não fez renda e por não fazer renda se perdeu no mundo como mulher que se perde mas que tinha sido ensinada pela bisavó que foi ensinada pela tataravó de Julieta.
Julieta, na vida, gostava de fazer renda.
Um dia, a avó de Julieta pediu a ela que parasse a renda, embora ainda fosse de tarde, pra modo de comprar pão pro café.
Julieta de olhos bem miúdos de tanto fazer renda, que gostava na vida, foi à padaria que trabalha Quinco, embora não fosse tão manhã que fosse noite.Era de tarde.
E Quinco conheceu Julieta
E Julieta conheceu Quinco.
E depois desse dia,
Quinco que vivia de fazer pão, passou a fazer pão pensando em Julieta.
Com a massa de pão ainda tão cedo que parecia até noite, Quinco imaginava Julieta.
Quinco amassava a massa com um amor conjugal que nutria pela moça. Um carinho no fazer pão no dobrar a massa no jogar farinha e alisar e no cortar delicadamente na tentativa de não ferir.Quinco sentia Julieta na massa.
E depois desse dia,
Julieta que vivia de fazer renda, passou a fazer rendas pensando em Quinco.
O jeito delicado de trançar a linha pelo pano. Via um beijo no encontro da ponta da agulha no tecido.Julieta passava a ver a cara de Quinco nos entremeios de renda, nas flores dos bordados. Julieta passava a rendar seu amor na tentativa de exteriorizar o sentimento que nutria. Julieta sentia Quinco nas rendas.

Julieta e Quinco nunca se falaram.
Mas depois daquele dia, a cidade passou a ter melhores pães e mais bonitas rendas.
De repente parece que tudo faz sentido.
Parece que tudo está no lugar que foi meticulosamente planejado para estar em algum lugar de um tempo que passou.
Parece que o universo agora se encaixa e começa a fazer sentido.
E assim sobre o sentido, digo que sinto os meus passos mais compassados e doces
em uma leveza que parece conduzir a um luxo radioso de sensações.
Sensações doces.
De repente parece que tudo ficou mais brando
suavemente a vida passa a se fazer sentir mais calma.
Se eu me permitisse descrever, tentando materializar, ainda que em palavras, essa sensação,eu diria estar envolvida por uma nuvem.
Uma nuvem com entremeios de uma transparência fina e delicada.
Uma sensação meio flor, meio gente. Meio nuvem,meio passarinho.
Meio grama, meio cheiro de grama. Meio corrida descalça na grama.
Acho que de tanto tentar descrever,encontrei a palavra para o que de repente sinto:

Harmonia.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

a sinceridade

Há dias em que a existência se torna insuportável,assim como a possibilidade de inexistência de mim, que se torna angustiante.
Há pessoas que.Há dias em que há pessoas que não suportam o ser.
Não sei se é coisa minha.Seria eu a única no mundo que, por vezes, não suporta o peso de ser? Há um quando em que não suporto o peso de me ser, ou de não me ser,visto que não peso. Convivo com essa falta de existência que, por existir, já me mata.
Nesses dias, enjôo de meus pensamentos,tenho náuseas secas com meu jeito, irrito-me com meus modos naturais.

E há dias em que eu, que costumo ver o mundo em flores, ou flores no mundo, canso-me de tudo isso.E mais, crio uma antipatia, talvez uma ojeriza pelo meu próprio mim.

A verdade é que há dias em que me acho insuportavelmente chata.

sábado, 10 de julho de 2010

Valsinha

Um dia, ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a de um jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto, convidou-a pra rodar
E então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça, foram para a praça e começaram a se abraçar
E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda cidade se iluminou
E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz

(Chico Buarque)

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